A Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023, aprovada pelo Senado em segundo turno de votação, representa mais um capítulo da crônica violação aos direitos dos credores de precatórios no Brasil.
O texto estabelece limites para o pagamento de precatórios por estados e municípios, altera o índice de correção monetária dessas dívidas e retira temporariamente os precatórios federais do limite de despesas primárias. Contudo, uma análise detida das disposições propostas revela flagrante inconstitucionalidade material e formal da medida, configurando verdadeiro retrocesso na proteção dos direitos fundamentais dos credores judiciais.
Histórico de sucessivas violações constitucionais
O sistema constitucional de precatórios tem sido objeto de sucessivas alterações que sistematicamente privilegiam o devedor público em detrimento do credor privado. A Emenda Constitucional nº 62/2009 instituiu o regime especial de pagamentos, permitindo que Estados, Municípios e o Distrito Federal quitassem suas dívidas de forma escalonada.
Esta emenda foi posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4357 e 4425, por violar direitos fundamentais como a efetividade da jurisdição, a intangibilidade da coisa julgada e os princípios da isonomia e moralidade administrativa.
Não obstante a decisão do STF, o Congresso Nacional editou sucessivas emendas constitucionais prorrogando prazos de pagamento. A EC 94/2016 estabeleceu novo regime especial com prazo para quitação até 2020, a EC 99/2017 ampliou o prazo para 2024, e a EC 109/2021 estendeu novamente o prazo para 2029. Este padrão de comportamento evidencia a existência de um verdadeiro “calote institucionalizado”, que desrespeita sistematicamente as decisões judiciais transitadas em julgado.
Precedentes consolidados do Supremo Tribunal Federal
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é inequívoca ao reconhecer a inconstitucionalidade de mecanismos que perpetuam a dívida pública judicial. No julgamento das ADIs 4357 e 4425, a Corte considerou que a dilação temporal excessiva e a perpetuação do parcelamento dos precatórios configuram um inadimplemento disfarçado por parte do Estado, frustrando a efetividade das decisões judiciais e esvaziando o conteúdo da coisa julgada. O STF tem demonstrado rigor ao invalidar tentativas de prolongar indefinidamente o pagamento de precatórios, classificando-as como desvirtuamento do sistema constitucional e verdadeiro calote.
Recentemente, em novembro de 2023, o STF derrubou por maioria de votos as alterações implementadas pelas Emendas Constitucionais 113 e 114/2021, que impunham um teto para o pagamento de precatórios entre 2022 e 2026. Na decisão, o relator ministro Luiz Fux reconheceu que a imposição de limites em 2021 se justificava pela necessidade de ações de saúde em razão da pandemia, mas que a mudança de cenário não mais justificava a limitação dos direitos individuais dos credores.
Violação ao princípio da duração razoável do processo
A PEC 66/2023 viola frontalmente o princípio constitucional da duração razoável do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal e no art. 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica. Dados empíricos que a Dra. Daniele Naves, diretora jurídica da Aldanth, coletou em sua pesquisa de Pós-graduação na USP demonstram que o sistema de precatórios no Estado de São Paulo apresenta tempo médio de tramitação de 26,4 anos entre a distribuição da ação inicial e a quitação efetiva, sendo que 85% dos processos tramitam por mais de 20 anos. Após a inscrição no orçamento, decorrem aproximadamente 15 anos para a efetiva liquidação do precatório pela entidade devedora.
O princípio da duração razoável do processo abrange não apenas a fase cognitiva, mas também a atividade satisfativa da tutela jurisdicional. A PEC em análise perpetua a violação a este direito fundamental ao estabelecer limites percentuais para pagamento de precatórios sem garantia de prazo final para quitação, podendo resultar em décadas de espera adicional para os credores.
Afronta à intangibilidade da coisa julgada
A PEC 66/2023 configura violação ao princípio da intangibilidade da coisa julgada, cláusula pétrea protegida pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. Os precatórios representam dívidas decorrentes de sentenças judiciais transitadas em julgado, cujo pagamento não pode ser indefinidamente postergado sem violar a força executória das decisões judiciais. A imposição de limites percentuais para pagamento, sem prazo final definido, esvazia o conteúdo das decisões judiciais e frustra a efetividade da prestação jurisdicional.
Nesse sentido, a tese da intangibilidade absoluta da coisa julgada é elemento formador do Estado Democrático de Direito que não pode ser apequenado por limitações orçamentárias. A relativização da coisa julgada baseada em critérios subjetivos ou limitações financeiras implicaria em conflito principiológico entre segurança jurídica e efetividade, com risco de eternização das discussões judiciais.
Violação ao princípio do acesso à justiça
A PEC 66/2023 viola substancialmente o princípio do acesso à justiça em sua dimensão material, não apenas formal. O acesso à justiça não se esgota na possibilidade de ajuizar ações judiciais, mas exige a efetiva satisfação dos direitos reconhecidos em prazo razoável. A proposta cria obstáculos adicionais ao recebimento de créditos já reconhecidos judicialmente, configurando verdadeiro filtro que beneficia sistematicamente o Estado devedor.
A medida frustra a legítima expectativa dos credores de receber o valor devido em prazo compatível com a dignidade humana e a segurança jurídica. Esta violação é particularmente grave quando se considera que muitos credores dependem dos valores para subsistência, especialmente em casos de aposentadorias, indenizações por acidentes ou reparações por danos morais.
Prejuízos econômicos aos credores: alteração do índice de correção
Um dos aspectos mais prejudiciais da PEC 66/2023 é a alteração do índice de correção monetária dos precatórios. O texto propõe substituir a correção pela taxa Selic pelo IPCA acrescido de 2% ao ano em juros simples. Considerando que a taxa Selic se encontra atualmente em 15% ao ano e o IPCA acumulado em 12 meses é de aproximadamente 5,35%, a mudança representa uma redução de cerca de 7,65 pontos percentuais na correção dos créditos.
Esta alteração configura verdadeiro confisco, pois o Poder Público continuará a cobrar débitos de contribuintes pela taxa Selic, mas pagará suas dívidas com índice infinitamente menor. A medida viola o direito de propriedade dos credores e cria tratamento desigual entre o Estado e o contribuinte, contrariando a jurisprudência do STF no RE 870.947, que estabeleceu critérios específicos para correção de precatórios.
Limitação desproporcional dos pagamentos
A PEC 66/2023 estabelece limites de pagamento de precatórios variando entre 1% e 5% da receita corrente líquida, conforme o estoque de dívidas em atraso. Esta limitação, sem prazo final para quitação, pode resultar em pagamentos que se estendem por décadas, violando o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. A proposta permite ainda que os percentuais sejam revistos a cada dez anos, perpetuando indefinidamente a situação de inadimplemento.
O sistema proposto cria tratamento desigual entre credores de diferentes entes federativos, pois aqueles vinculados a municípios com maior estoque de precatórios ou menor receita corrente líquida sofrerão condições mais gravosas de pagamento. Esta discriminação afronta a lógica constitucional de paridade entre os jurisdicionados e viola o princípio da isonomia.
Perpetuação do estado de coisas inconstitucional
A situação dos precatórios no Brasil configura verdadeiro “estado de coisas inconstitucional”, conceito desenvolvido pela Corte Constitucional Colombiana e acolhido pelo STF na ADPF 347. Este fenômeno se caracteriza pela violação generalizada, persistente e estrutural de direitos fundamentais, resultante de omissões estatais reiteradas e incapacidade institucional de superação do quadro de inconstitucionalidade.
A PEC 66/2023, ao invés de solucionar o problema estrutural, perpetua e agrava a violação de direitos fundamentais. A proposta atende aos seis critérios estabelecidos pela jurisprudência para configuração do estado de coisas inconstitucional: (1) violação massiva de direitos; (2) omissão prolongada das autoridades; (3) práticas inconstitucionais; (4) ausência de medidas adequadas; (5) problema complexo que demanda intervenção coordenada; (6) risco de congestionamento do sistema judicial.
Dados empíricos da gravidade da situação
A dimensão do problema é evidenciada pelos dados empíricos disponíveis. Em 2025, a Fazenda Pública do Estado de São Paulo possui 169.847 precatórios pendentes de pagamento, estando em processo de quitação de precatórios inscritos na ordem orçamentária de 2012. O saldo que os municípios têm a pagar de precatórios subiu de R$ 49,5 bilhões para R$ 82,9 bilhões nos últimos 4 anos, representando um aumento de 67%.
Inspeção realizada pelo Conselho Nacional de Justiça na Diretoria de Execução de Precatórios de São Paulo identificou que apenas 6,37% dos valores distribuídos em 2023 foram pagos diretamente aos beneficiários, enquanto 7.557 credores com superpreferência permaneciam na fila de pagamento mesmo com recursos disponíveis. Estes dados demonstram que o problema transcende limitações orçamentárias, decorrendo de barreiras processuais e estruturais.
Posicionamento contrário da Ordem dos Advogados do Brasil
O Conselho Federal da OAB se manifestou expressamente contrário à PEC 66/2023, encaminhando nota técnica aos membros da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. A entidade ressalta que a proposta viola direitos e garantias dos credores de precatórios assegurados pela Constituição Federal, cuja afronta já foi declarada inconstitucional pelo STF em diversas oportunidades.
A OAB/SP divulgou nota técnica específica apontando que a PEC estabelece regime que “acaba por violar direitos e garantias dos credores de precatório consubstanciados pela Constituição Federal”. A entidade enfatiza que as decisões do STF sobre a inconstitucionalidade de limitações aos precatórios “deveriam ser as principais balizadoras para a análise da constitucionalidade de qualquer nova regra que envolva o regime de pagamento de precatórios no país”.
Considerações Finais
A PEC 66/2023 representa mais um capítulo da sistemática violação aos direitos dos credores de precatórios no Brasil, configurando flagrante inconstitucionalidade material e formal. A proposta contraria precedentes consolidados do Supremo Tribunal Federal, viola princípios fundamentais como a duração razoável do processo, a intangibilidade da coisa julgada e o acesso à justiça, além de perpetuar o estado de coisas inconstitucional já identificado no sistema brasileiro.
Os prejuízos aos credores são evidentes: alteração prejudicial do índice de correção, limitação desproporcional dos pagamentos e perpetuação do inadimplemento estatal. A medida privilegia sistematicamente o devedor público em detrimento do credor privado, invertendo a lógica constitucional e comprometendo a credibilidade do sistema de justiça. É imperativo que o STF declare a inconstitucionalidade da proposta, adequando-a aos parâmetros constitucionais e à sua própria jurisprudência, sob pena de perpetuação de um sistema que nega efetividade aos direitos fundamentais e à prestação jurisdicional.